Capítulo 1

 

DAVI ROCHA

 

Toda primeira vez faz a gente suar frio. Não importa se é beijo, transa, uma escola nova ou emprego. As reações são as mesmas: a mão sua, a barriga parece que tem um zoológico dentro, o ar falta e o sofrimento não tem fim. Só que, desta vez, não sei como explicar o motivo de estar me sentindo assim. Por que ficaria ansioso em contar uma coisa boa para alguém tão importante para mim?

Na mesa do bar, quico a perna sem parar, nervoso ao esperar minha melhor amiga. Até ela chegar, tenho que achar uma maneira de contar o que está acontecendo. Afinal, não estaria nessa situação se não fosse por Mari. Tentando me distrair, fico olhando para as mensagens no celular, rolando a tela de conversas para cima e para baixo. O grupo do Graxaim, o meu atual time, está movimentado. Todo mundo sempre tem algo para falar. Devem estar até estranhando o meu silêncio.

Ficar quieto não é covardia, mas preservação: vou manter minha boca fechada para não dar nada errado.

— Carro, piá!

Escuto um grito vindo da rua. Alguns garotos jogando bola chamam a minha atenção, o que faz uma nostalgia fodida me invadir. No sábado, era o que mais se ouvia durante a pelada nas ruas perto de casa, antes de o Graxaim entrar em campo. Tudo bem que o time da cidade não tinha tantos torcedores, porque ninguém gosta de uma equipe que não ganha muito, mas o Graxaim sempre foi o meu time. Então, dá para entender como foi defender aquela camisa.

Quase morri na primeira vez que entrei em campo. Depois, com o tempo, ficou mais fácil, por isso achei que nunca mais me sentiria daquele jeito. Afinal, time do coração só se tem um.

Só que bastou uma mísera ligação para me fazer voltar a suar frio e querer vomitar em qualquer lugar. Não quero nem pensar nisso, porque vou passar vergonha aqui no bar. São nesses momentos que me esqueço um pouco do homem do caralho que sou, só para voltar a ser o adolescente vara-pau que não conseguia nem dar bom dia para uma guria.

— Olápedrinhas! — Mari joga a bolsa em cima da mesa, me dando um susto do caralho. Ela desmonta na cadeira, assim que tasca um beijo na minha bochecha. — Desculpa a demora, eu… não importa. É coisa do trabalho.

— Que isso! Desde quando você precisa pedir desculpa por um pequeno atraso de… hum… 25 minutos? — Balanço a cabeça. — Eu que sou mestre em atrasos.

— Isso é verdade. Afinal, ainda não bati o seu recorde de me deixar esperando por duas horas. — Ela sorri e enche o copo vazio à sua frente.

Mariana, minha melhor amiga, é uma contradição em pessoa: o cabelo escuro, preso num rabo de cavalo alto, ainda balança por causa da corrida até aqui, o que dá um ar profissional, mas juvenil a ela. As roupas sociais cobrem várias tatuagens que sei de cor o desenho e a localização. A mulher à minha frente em nada lembra a garota de trancinhas e boné para trás que apareceu um dia na casa do meu avô, usando uma camisa do Graxaim grande demais para ela.

Tínhamos sete anos quando nos conhecemos. O tio dela a trouxe para ver o jogo lá em casa, e, então, viramos unha e carne.

Mari sempre me entendeu, desde aquele primeiro grito de “Vai, Graxaim”. Por isso, espero que entenda agora também. É mais difícil contar isso para ela do que foi para minha própria mãe, e sem motivo nenhum! Tá, eu sei por que é complicado: Mari pode ser a única que entenda de verdade pelo que estou passando.

— Quem te vê arrumada assim, Marimbondo, nem acredita que sai rouca do estádio após xingar a mãe de todo mundo — provoco.

Minha amiga é linda, e faz o tipo matadora de roupa social. Mas é só o Graxaim pisar em campo que ela deixa de ser princesa e vira um ogro. Ela é tipo a Fiona do Shrek

— Seu cabelo tá legal, podia usar mais vezes assim.

Desvio do assunto principal. Pare de ser cagão, Davi! Era só o que me faltava: bonito, gostoso, cheiroso e… Frouxo!

— Ihhh… Se tá querendo me agradar, vai precisar se esforçar mais. E tô achando que vem merda por aí. Você nunca elogia de graça, seixo. — Após sorver um generoso gole da cerveja, Mari suspira, satisfeita. — Então, qual é a grande notícia? Juro que pensei que alguém morreu, mas…

— É sobre o Graxaim — despejo de uma vez, antes que a coragem me abandone. Dou um grande gole na cerveja gelada, desapontado só de lembrar que terei que começar a economizar no álcool. — Como você sabe, eu…

— Tá cagando com as jogadas do Graxaim. Sim, não é nenhuma novidade. Já te falei isso, mas é uma fase, Cascalhinho. Não se preocupe, tenho certeza de que vai melhorar. Desculpe dizer, mas, como torcedora, não me importo de te xingar. Até quero que você seja vendido logo. Só que, como amiga…

— Então, sobre isso… — digo, respirando fundo. — Tô feliz, mas o time… Preciso que isso dê certo…

— Davi, você tá me deixando preocupada. — Mari fica séria e se endireita na cadeira. — O que tá acontecendo?

— É… Eu recebi uma ligação ontem. Me querem em outra posição. E não sei se dou pra isso.

— Como assim?

— Como me ligaram? Por telefone, Marimbondo! As pessoas ainda fazem isso, sabe? Você pega o celular…

— Não, ô cabeça de concreto. Estou falando sobre mudar de posição. Quem deu essa ideia bizarra? Você sempre foi lateral, pelo amor de Deus!

— Eu sei, mas…

— Mas? — Ela dá risada, balançando a cabeça. — Sério, de quem foi a estupidez? Só pode ter sido um diretor que acha que entende de futebol.

— Foi do Levi, do…

— O quê? Levi? Que Levi? Não lembro de um diretor chamado Levi.

Faço uma cara estranha, dando tempo para ela entender. Vejo exatamente quando a ficha dela cai.

— Ah, não. Sério? Levi Schmidt? — Mari abre e fecha a boca. — Aquele Levi, matador da pequena área? O atacante? O que o cara entende de lateral? Achei até que tinha largado o futebol de vez. Mas… peraí… Ele não foi anunciado como técnico do Frade? — Ela despeja tudo numa enxurrada de palavras sem fim, enquanto gesticula muito.

— Sim, o próprio. Então, ele me ligou e…

— Cara, pedregulho, o que você fez pra dar essa ideia pra ele? Quando o homem te viu jogar? Só não entendi por que Levi Schmidt tá dando pitaco no Graxaim e… ah. — Mari faz as contas, e o sorriso amplo morre um pouco. — Você recebeu uma ligação com uma proposta do Frade para jogar em outra posição.

— É.

— Ah, entendi. — Mari pega de volta o copo e bebe um pouco mais de cerveja. Eu sei que ela precisa de tempo para digerir a informação. — Hum, você me chamou aqui para me contar, né? Pela sua cara, já sei que está querendo minha bênção para ir se engraçar lá em São Luís.

— Basicamente — digo, ansioso pela resposta.

— Oh, Deus. Davi Rocha no São Luís. — Mari enterra as mãos no rosto. — Onde foi que eu errei?

— Marimbondo, não é assim também. Posso não aceitar. Claro que é uma chance e tanto, mas se não quiser… — Tento fazê-la olhar para mim, mas Mari continua com as mãos tapando a cara, como se estivesse chorando.

Até que um som de engasgo me alerta de que alguma coisa está errada. A palhaça começa a gargalhar do nada.

Filha da mãe.

— Francamente, guri! Acha mesmo que não te apoiaria? Eu posso ser uma eterna torcedora do Graxaim, mas você é meu amigo, caralho! Ainda quero te ver jogar na Europa, piá. — Mari limpa as lagriminhas que surgem no canto dos seus olhos claros. — Meu Deus, rochedoNão acha que eu mereço um pouco mais de crédito que isso?

— Porra, Mari! Se quer me infartar, avisa. — Largo o corpo para trás na cadeira, levanto o braço sobre os olhos. De certa forma, me sinto muito aliviado. — Só lembra que você não leva nada se eu morrer. Nem tá no meu seguro de vida.

— Idiota. Só não entendo por que toda essa preocupação. Britinha, você conseguiu uma promoção. Claro, não espere que eu torça para o São Luís, mas isso não significa que deixarei de torcer por você. Somos amigos, não somos? Ou você só me ama porque te dou uns chutes na bunda quando você erra no Graxaim? — Mari brinca, com um sorriso aberto e cheio de luz que atrai o meu olhar. — Você me deixou emocionada por querer a minha bênção, seu idiota — comenta, com a mão no peito, ao fazer uma cena dramática. Depois, vendo que estou mais calmo, ela estica a mão e segura a minha. — E seu avô já sabe?

— Foi o primeiro. Se ele não aceitasse, eu continuaria no Graxaim. Mas o velho disse que se estou feliz, ele está também. Considerando que ele foi dirigente do Graxa por metade da vida, não sei se acredito. Você sabe como é, Mari. Para ele, o time é tudo.

— Você é uma pedreira mesmo, idiota. Ele pode amar o Graxaim, mas ama muito mais você. Sabe que essa é uma oportunidade incrível, que você está crescendo. Duvido que ele quisesse que fosse jogador do Graxa para sempre. Só fico com a pulga atrás da orelha com o Levi te escalando numa posição diferente… Espero que pelo menos te paguem um salário melhor, assim você vai parar de me pedir dinheiro emprestado.

— Porra, Mari! Foram só umas poucas vezes… — reclamo, entrando na provocação.

Parece que a tensão e ansiedade eram bobagens. Sorrio, feliz por seu apoio. Ela é importante demais para mim. Está ao meu lado quase que a vida toda. E melhores amigos são para isso, não? Apoio em todos os momentos.

— Bem, era isso. Surpresa! Vou jogar no Frade. Serei um zagueiro.

— Espero que, como zagueiro, você seja um bom lateral.

— Pode parar de besteira. Além disso, tô me mudando para São Luís amanhã. 

— AmanhãE você vem me avisar hoje, sua pedra solta?

— Eu sei, eu sei. Mas estava inseguro com a sua reação. Se fosse ruim, eu ia ter que me preocupar por pouco tempo em ser picado pelas costas.

— Ha-ha-ha. Piadinha com meu sobrenome não tem mais graça. — Mari faz um gesto com a mão, como se espantando as palavras. — Seja mais criativo, paralelepípedo.

— Sempre tem graça, Marimbondo. — Sorrio. Vou sentir falta de te encontrá-la com frequência, dessa implicância boba. — Voltando ao assunto… Sei que está em cima da hora, só que, pelo que entendi, o Levi tá fazendo uma baita mudança no time e quer todos os jogadores lá antes de começar a pré-temporada. — Dou de ombros um pouco ansioso. Ela me conhece bem demais, por isso volta a segurar minha mão, passando o polegar sobre o dorso, num gesto tranquilizador. Isso, junto com seu olhar, me acalma.  — Obrigado, Mari. De verdade. Por tudo. Só consegui chegar aqui porque você estava do meu lado.

— Pode parar com a palhaçada, Davi. Deixa de ser inseguro, homem! Você é meu melhor amigo e quero sua felicidade, sempre quis. Claro que sempre torci, mas, se você chegou até aqui, é por merecimento. Não fui eu que entrei em campo e mostrei que um lateral pode ser um bom zagueiro. — Ela leva a mão à frente da boca, tapando a risadinha. — Sério, você é um jogador foda, que vai ser muito grande porque se esforça e tem talento. Se quer saber, o Frade tem sorte de ter Davi Pedregulho no time.

Seu olhar fica distante por um segundo, mas ela logo volta a sorrir. Ao se levantar, abre os braços numa cena constrangedora. Adoro essa mulher.

— Vem cá, seu seixo de rio! Dá um abraço e se despeça direito, para o caso das marias-chuteiras não me deixarem chegar perto.

Rindo, levanto-me também e puxo-a pela mão, fazendo seu corpo esguio se encaixar no meu, num abraço apertado. Sinto seu coração acelerado contra meu peito. Parece que estamos em sincronia. A baixinha fica na ponta dos pés, tentando alcançar meu rosto. Para facilitar, abaixo um pouco.

— Se você ousar me esquecer — sussurra, as mãos nas minhas bochechas —, vou chegar no Frade quebrando a cara de todo mundo até chegar na sua. Eu deixo você ir para aquele timeco, mas nada de sumir, tá legal?

— Confia, pai. Você sabe que jamais faria isso.

— Promete?

— Prometo, Marimbondo. Nada vai mudar entre a gente. Te amo, tá? — murmuro em resposta, apertando ainda mais o abraço. Nada no mundo me fará perder a amizade que tenho com ela. Mari faz toda a diferença na minha vida. — Você é um anjo.

— Hu-hum. Eu sei que você não vive sem mim.

Ela devolve o gesto e seu perfume gostoso me acolhe.

— Sempre serei seu anjo, Davi.

Mari se afasta e aponta para o pingente no cordão dourado. Foi o primeiro presente decente que dei para ela, comprado com o meu primeiro salário no futebol. Depois que coloquei ele ali, Mari nunca mais tirou. Na época, ela não tinha um decote tão farto emoldurando o anjinho. Mesmo nunca tendo outra intenção além de amizade, não sou cego. Também duvido 

Conquistado na Prorrogação

Natália Saj

372 Páginas

Recomendado para maiores de 18 anos

Davi Rocha achava que já tinha provado o seu talento… até receber uma oportunidade no Frade.
Ao ser convidado para a equipe principal do São Luís Futebol Clube, descobriu que poderia ser melhor, desde que aceitasse diversas mudanças em sua vida. Mas recomeçar nunca é fácil. Principalmente no caso do novo zagueiro, que não se acha merecedor de todas as oportunidades que está recebendo. E o pior de tudo é se afastar das pessoas que mais ama: sua família e a melhor amiga.
Mariana Ferrão está cansada de fingir que não ama Davi. Quando seu amigo foi para o Frade, ela achou que seria a chance perfeita para esquecê-lo. Só que, agora, Mari precisa se mudar para São Luís a trabalho. Dividir o apartamento com ele pareceu óbvio, também um sinal de que cruzar a linha da amizade pode finalmente ser uma boa ideia — e ela fará de tudo para seduzir e conquistar de vez aquele homem.

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