Capítulo 1

Samantha olhava as duas crianças comerem e não conseguia as distinguir de cães famintos.

Há meses vinha analisando o casalzinho de pedintes que os criados das elegantes casas de Mayfair enxotavam rudemente, excluindo, é claro, a senhora Margareth, sua cozinheira, que após algumas palavras para ser convencida, passou a entregar algo embrulhado para eles, que saíam correndo e sorrindo.

A tarefa de criar um coração caridoso em Margareth fora difícil. A mera ameaça da Viscondessa descobrir que as sobras estavam indo para pedintes a deixava sem fôlego. Mas Samantha ousou usar palavras das escrituras para abrandar aquele coração temeroso, além do mais, não passavam de pães amanhecidos e restos de carne do jantar, convencê-la de tratar melhor os órfãos era um ato de caridade.

Irmãos. Idade imprecisa, mas ela apostava que o menino, Charles, deveria ter uns treze anos; e a menina, Emma, nove anos ou menos. A falta de alimentação adequada a tornara frágil e pequena.

Após algumas semanas ininterruptas de lanches escondidos na cavalaria, Samantha tentava descobrir algo sobre a vida dos dois, e os levou para dentro da casa.

― Milady ― Margareth chamava qualquer dama de milady, não importando sua posição ―, creio que seria mais apropriado deixá-los comer lá no estábulo mesmo. Se a Viscondessa descobrir que estão aqui na cozinha, perderei meu emprego.

Samantha virou os olhos, desdenhando o temor da criada.

― Pare de bobagens, Margareth! Há quantos anos trabalha aqui?

― Mais que dez.

― Quantas vezes minha mãe veio até a cozinha?

A rechonchuda senhora parou para pensar, colocando as mãos na cintura e logo um sorriso iluminou seu rosto. ― Ela nunca vem aqui.  

No canto da cozinha, próxima à escada que subia para a parte social da casa, Janete, a criada de Samantha, estava de guarda, por via das dúvidas.

― Me contem, crianças, como é mesmo o nome do lugar onde vocês moram?

O menino cortou um pedaço de pão com os dentes e, com a boca cheia, respondeu à dama: ― Casa dos Anjos.

Ela não fazia ideia de onde era o lugar, mas a criada engasgou e precisou ser socorrida pela senhora Margareth. Pelo tom que a pele dela adquiriu, Samantha podia apostar que ela sabia exatamente onde era o local. Descobriria depois.

Continuou a inquisição com as crianças até escutar a aldrava da porta de entrada. As convidadas para o chá da tarde haviam chegado, precisava subir e voltar a seu mundo abastado.

Mas, como prestar atenção no que a tia, suas primas e sua mãe conversavam com o coração todo apertado daquele modo?

Olhava para os bolinhos e sanduíches, finamente expostos em bandejas de prata, o chá sendo servido na xícara de porcelana leve que sua mãe encomendara da China. E seu pai, o Major Visconde Franklin Tabbot, trouxe prontamente de uma de suas viagens ao continente os vestidos repletos de fitas de cetim e bordados, e pensava na dissonância do mundo inferior de Londres.

― Samantha, você está se sentindo bem? ― A prima mais nova, Cassidy, a tirou de seus devaneios.

― Sim, só um pouco apreensiva quanto ao baile dos Carnegie amanhã. ― Ninguém suspeitaria que essa não era a preocupação dela, afinal, Samantha era tímida e tinha uma estranha preferência em ficar em casa, mesmo sua família sendo extremamente social, levando-a a todos os eventos possíveis.

― Preciso lhe contar sobre meu vestido, peguei hoje na modista e está um arraso! ― Coraline, a prima com sua idade, debutaram juntas, faladeira, espevitada, assombrava os pretendentes com seu jeito espontâneo, pulou no sofá ao seu lado, pegando sua mão. ― Tenho fé que o alaranjado do vestido vai chamar a atenção de Lorde Peter Tucker e ele certamente pedirá que eu reserve a valsa para ele.

― Peter Tucker? O filho do Conde de Aberdalle? Desde quando tem olhos para ele?

― Desde que soube que ele tem como amante aquela cantora italiana que vimos mês passado na ópera. ― Virando-se para sua mãe, com um bolinho pela metade na boca, grasnou: ―  Como era mesmo o nome da cantora com a boca enorme que vimos no Drury, mamãe?

― Susane Del Priore ― a mãe respondeu, logo voltando a atenção à irmã que sussurrava outra fofoca qualquer, mais importante que as loucuras da filha.

― Você quer ser cortejada por um homem que tem amante, Cora? Enlouqueceu de vez?

― Não entende. ― Empurrou a irmã para o lado, iria falar algo impróprio para os ouvidos apenas cinco anos mais novos. ― Se ele consegue manter uma amante poderosa como ela, além de título e dinheiro, ele deve ser excelente na arte de amar.

Samantha estava bebendo um gole de chá só para disfarçar, mas não aguentou o comentário indiscreto da prima, e para não engasgar, cuspiu o líquido que voou em direção aos bolinhos.

― Samantha! Que modos terríveis! ―  A mãe ralhou, olhando para a criada a postos perto da porta, ordenou que levasse todos os acepipes para a cozinha.

― Mamãe, me perdoe. Se me der licença, gostaria de subir aos meus aposentos e mostrar à Cora o vestido que usarei no baile de amanhã.

― Sim, pode levá-la para ver a maravilha de tecido que escolhemos. ― Virando-se para a irmã, confidenciava sem discrição. ― Soube que o terceiro filho do Duque de Northburg, Lorde Westin, adora verde-jade, então encomendei exatamente esta cor.

― Westin, é sério? – Cora segurou o braço de Samantha, questionando a prima sobre a escolha da tia.

― Ele é o escolhido da minha família para esta temporada, você sabe.

― Mas dizem que ele prefere, digamos, rapazes, no lugar das damas.

― Sim, estou ciente, mas minha mãe descobriu que ele precisa se casar para manter as aparências, e julga que seria ótimo para mim, pois não me importunaria. ―  Samantha não mencionou a parte que sua mãe dissera que até o herdeiro ela poderia providenciar com outro que seu esposo não se importaria. Era humilhante demais. ― Poderia ser pior, Cora, eles já ponderaram até alguns militares conhecidos, que provavelmente me levariam nas missões.

― Ao menos vocês se conhecem há um tempo, posso até dizer que são amigos?

Sorriu, pois, esse era o fato que a tranquilizava quanto à escolha de sua família. A propriedade de campo dos Tabbot ficava no caminho de Stainfield, onde o Duque Northburg tinha lucrativas terras, então se tornou comum que as famílias sempre se reunissem.

― O Duque frequenta Thorpe Tilney sempre que estamos lá.

Samantha sabia que sua vocação para a paz e tranquilidade era vista com maus olhos pela família. Com dois irmãos mais velhos, simpáticos, bastante populares, bonitos e endinheirados, com posições ascendentes no exército, ela precisaria ser como eles ou melhor, para se destacar, mas algo na fórmula saíra errado.

Tinha estatura mediana, um cabelo liso demais, com cachos inexistentes de tão finos, que viviam teimando em desobedecer aos penteados da moda, sem cor de tão claros, olhos miúdos verdes, iguais ao de Thomas, seu irmão mais velho, não muito perceptíveis aos seus pretendentes. Sua preferência pela calmaria doméstica era algo inaceitável para muitos, mas a tornava um bom partido para outros que tinham em mente uma esposa de aparência recatada que abafasse, ou não se importasse, com escândalos vindouros.

Para deixá-la ainda mais incomodada, nos bailes, sempre adentrava com o braço dado aos dois irmãos, lembrando que Edward, já era subtenente, com sua farda elegante, atraía olhares aonde ia. Eram muito mais altos que ela, e sua mãe ainda a enfeitava com uma coleção de pedras e brilhantes fazendo-a parecer ou uma vitrine da Picadilly, ou pior, uma cortesã.

Ao chegarem ao quarto, ela trancou a porta e puxou a prima para o assento almofadado sobre a janela.

― O que você sabe sobre Lorde Dean Fernsby?

― O que você quer saber daquele traste do Marquês Hereford?

Ai, não. Sua prima sabia quem era esse Marquês. Deveria ter adivinhado que para cuidar tão mal assim de um orfanato, não deveria ser uma pessoa de bom coração. E Cora tinha fascínio por pessoas impopulares ou polêmicas.

― Queria ajudar umas crianças pobres que pedem comida e vagam pelas ruas aqui de Mayfair, mas creio que se o Marquês é o mantenedor daquele lugar, não terei muita chance de fazer a diferença então…

Samantha contou sobre as crianças e sobre tudo que descobrira naquela tarde. O orfanato tinha por volta de umas cinquenta crianças, que eram cuidadas por somente quatro funcionárias. Não oferecia nenhuma instrução ou diversão para aquelas pobres almas, somente um teto, cama e duas refeições por dia. Aparentemente, vivia de doações e da boa vontade de um bêbado conhecido por todas as salas de apostas de Londres, que era o mantenedor do local, Lorde Fernsby, o Marquês Hereford.

A prima conseguiu se manter calada ouvindo as lamentações de Samantha, porém, os braços cruzados e a cabeça balançando freneticamente em negativa, indicavam que ela não concordava.

― Sei que é uma loucura, mas pensei que poderia ajudar.

― Uma loucura é você ter um objetivo claro pela primeira vez em sua insignificante vida. Um motivo para preencher seus dias e sair da sombra de seus irmãos, e se deixar abater só por um nome de um nobre que não consegue chegar em casa sem ajuda, por tanta bebida que ingere nas mesas de jogos ou casa de apostas. ― Cora estava fascinada pela empolgação sempre inexistente da prima ter finalmente aflorado.

Coraline habitava em uma casa muito movimentada, não que a de Samantha, repleta de militares, não o fosse. Seu pai, um Barão muito bem relacionado, recebia visitas quase que o dia inteiro, sua mãe apreciava a vida alheia, e também recebia suas amigas mais falantes quase que diariamente. Por isso, Samantha sabia que ela conheceria o tal Lorde Fernsby que a criada tinha dito ser o dono do lugar onde ela sabia que uma conhecida havia deixado uma criança bastarda.

― O que espera que eu faça? Que eu vá até a casa dele, que eu nem sei onde é?

― Acho que fica na Grosvernor, ou na Berkeley…

― Então, sugere que eu vá até lá e exija que ele contrate professores, acrescente mais uma refeição por dia e dê condições melhores para aquelas crianças?

― Sim!

― Você é louca!

― Acredite em mim quando te digo que escuto isso com mais frequência que você possa imaginar. ― Coraline soltou uma deliciosa gargalhada. – Estou há semanas escutando sobre essas crianças, precisava se ver falando delas, estava radiante!

― Quero ajudar, mas não posso fazer isso. ―  Além de ser algo que não fazia parte do jeito de ser de Samantha, ela sabia o quão imprópria era toda aquela ideia.

― Pode e vai, vou te ajudar, já tenho um plano! Amanhã vai se aproximar dele.

― Não quero me aproximar dele. ― Samantha se levantou nervosa. ―   Quero que ele cuide melhor daquele lugar, só isso. Pare de me comprometer! Está se esquecendo da companhia de guerra que tenho no meu teto?

― Amanhã te levo ao encontro dele. ― Coçou o queixo. ― Creio que ele já foi algumas vezes em casa, vou perguntar para minha mãe. Acho que o conheço, só não sei se ele se lembrará de mim.

― Não! Deixe nossas mães fora disso. ― Pedir ajuda para Cora se mostrava a parte mais perigosa de todo plano. ―  Você não tem ideia de quão impróprio seria se aproximar daquele homem, não é mesmo?

O Marquês Embriagado

Moira Bianchi & Lucy Dib

277 Páginas

Recomendado para maiores de 18 anos

Um romance apimentado, carregado em erotismo vanilla, para conquistar o coração das leitoras.
St Daniels é o Duque perfeito, tão bonito quanto debochado e, no entanto, cai de desejo pela moça simples que o enfrenta de igual para igual. Casinha no interior, reforma de mansões, floresta em noite de luar, tempestade e por do sol encantado formam o cenário perfeito para a sedução e o nascimento de um laço forte demais para ser desfeito por um desentendimento.

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