Capítulo 1

 

— Vamos lá, meninos! Já passamos pelo pior — eu digo aos fortes cavalos que puxam a carruagem. Minha voz soa um pouco ríspida, mas, de certa forma, é suave junto com o estalo do chicote no ar. Nunca, jamais estalava nas costas dos animais. Eram meus amigos, companheiros, criaturas valorosas. E que custaram muito dinheiro. Foi por causa disso que demorei seis meses para fazer esta jornada. E, mesmo com a demora, não me arrependia de absolutamente nenhum centavo gasto com esses cavalos maravilhosos.

Entre a imensa quantidade de poeira que a carruagem levantava na correria, pude ver uma velha placa de madeira, logo depois da próxima curva da estrada. A subida era uma simples e pequena ladeira, nada demais para os cavalos fortes que me levavam, mesmo assim, senti pena dos animais e da força que faziam.

Exatamente como meus cálculos, a placa indicava a estalagem que ficava na entrada do próximo condado. Tudo corria bem, de acordo com meu planejamento. Agora, só precisava ficar atenta e ser esperta.

Por mim, só eu mesma.

Fazia tempo que este era meu lema de vida.

Eu fui uma boa moça da baixa aristocracia, gente trabalhadora que ganhou dinheiro com o comércio – o que era ocupação desprezível para os ricos da nobreza. Porém, há cinco anos, minha vida começou a mudar até atingir o ápice do caos, quando precisei me esconder, onde estou agora, fingindo que viajava para casa de parentes endinheirados.

Voltando ao presente, refiz os próximos passos mentalmente, enquanto a carruagem mantinha seu ritmo acelerado. Parar, dar água aos cavalos, comprar cerveja e vinho aquecido, pegar o jornal e sair rápido, sem chamar atenção de ninguém. Era fácil, se soubesse como fazer, e eu já tinha completado essas tarefas duas vezes, desde a madrugada passada, quando deixei Londres, a cidade grande onde eu vivi a vida toda antes de partir para essa aventura que é minha vida nova.

O triste fato de não ter ninguém para me socorrer fez com que eu precisasse ser sagaz para me manter segura, me esgueirando pelas estradas do interior, sozinha. A cada curva desconhecida queria desistir, me sentar enrolada como uma bola e chorar. Entretanto, ainda não havia chegado o tempo para isso. Minha meta era alcançar Redlake House o mais rápido possível. Depois, quem sabe, poderia me entregar à realidade e afundar em comiseração.

— Só mais um pouco e logo chegarei. Então, nunca mais terei que me expor assim — sussurrei, em uma fraca tentativa de acalmar meu coração.

Chegar à estalagem não ajudou a me tranquilizar. O lugar era grande, confuso e cheio de gente, o que era, ao mesmo tempo, bom e ruim. A confusão me ajudaria a ficar incógnita. Mas, havia o risco de, entre tantas pessoas, alguém poder causar problemas.

Logo na entrada do pátio, um homem gordo chegou perto da carruagem, gritando para que movesse o veículo para os fundos do local.

— Só os passageiros descem aqui. Criadagem é atendida lá atrás.

Era hora do meu show. Engoli em seco e pigarreei baixo na garganta, apontando com o polegar sobre o ombro, para a carruagem. Tudo sem tirar o lenço que cobria meu nariz e lábios. Usava o apetrecho por causa da poeira na estrada.

— Minha senhora está com pressa — enfatizei com uma expressão de desdém nos olhos, como os homens são mesmo impacientes.

O homem estreitou os olhos, fazendo uma cara de deboche.

— Sempre estão. Vá para os fundos que um menino vai lhe ajudar a tratar os cavalos. — O atendente chegou perigosamente perto da carruagem, quase encostando no meu acompanhante de boleia, para meu horror. Eu dei um cutucão nele só para dar um movimento no coitado. — Diga que o Grande Jack te mandou e darão cerveja fresca para vocês. Essas damas da Sociedade são um nojo — ele terminou abaixando a voz para não ouvirem de dentro da cabine.

Rugi de volta, pedindo que falasse mais baixo ainda, mas balancei a cabeça concordando. Era melhor seguir o plano antes que algo o fizesse se aproximar mais e descobrir o meu disfarce.

Na parte de trás da estalagem havia muitas carruagens paradas, algumas tendo as rodas ou cabines consertadas, enquanto outras estavam sem os cavalos, que eram cuidados na cocheira. Joguei uma moeda para o garoto que me atendeu, resmungando que os cavalos precisavam somente de água e comida e meu companheiro de boleia queria mesmo era dormir. Peguei o saco de couro que trazia e bati na porta da cabine. Esperei alguns momentos respeitosos antes de abrir. Tirei o chapéu ao falar com quem estava ali dentro, concordando com o silêncio que se seguiu antes de voltar a fechar a portinha. Virei e caminhei até a porta do salão dos criados.

— Minha senhora gostaria de vinho aquecido e do jornal — pedi para a atendente à porta. — O Grande Jack…

— Já sei, já sei. Ele te disse para tomar cerveja de graça. — A mulher idosa sacudiu a cabeça. — Aquele burro vai ficar pobre se continuar dando nosso lucro para qualquer cocheiro que passa por aqui. — Inconformada, ela bateu com uma caneca cheia na bancada. Em seguida, se virou para encher uma jarra de vinho tirada do fogão.

Aproveitei para passar a cerveja para a moringa. Assim que peguei o vinho, coloquei-o na garrafa que também tirei do saco. Decidida a partir rapidamente, coloquei uma moeda no tampo e virei as costas.

— Já bebeu toda a cerveja?! Que sede, rapaz! — a mulher disse, desconfiada. — Não vai comer nada? Nem levar para sua senhora?

 Milady tem pressa — respondi, com as sobrancelhas unidas, o lenço imundo ainda tampando metade do rosto. — Ela tem nojo de estalagens desconhecidas. — Tentei arrotar para entrar mais no personagem. Era um hábito nojento, mas a estalajadeira esperaria isso de um cocheiro.

— Ora, veja só! Essas aristocratas arranjam cada desculpa… — a mulher bufou.

— O jornal, senhora?

Ela apontou a mesa. Inspirei fundo, reunindo coragem: ia precisar entrar no salão movimentado.

— Vai lá, Alya, coragem. Falta pouco agora — murmurei, buscando forças.

Se o periódico não fosse de extrema importância, eu já teria dado meia-volta e fugido dali. Porém, coloquei um pé, calçado numa bota três números maiores, na frente do outro e fui até a mesa. Assim que entrei no salão apinhado de gente, ouvi a conversa masculina, os gritinhos de mulheres oferecidas e as risadas grosseiras. Durante todo o tempo, mantive meus olhos no jornal adiante. Logo que ficaram ao meu alcance, peguei dois exemplares completos, coloquei outra moeda na mesa e tentei sair tão rápido e silenciosa quanto entrei.

— Ei, você!

Congelei já com um pé na porta. Droga, quase tinha conseguido escapar. Deslizei a mão para dentro do bolso da casaca surrada, onde a arma de fogo estava guardada. Só então virei, devagar. Estava com os olhos arregalados, certa de que tinha sido pega. Podia sentir uma gota de suor descendo por entre meus seios.

— Meu jovem, você deixou dinheiro demais.

Ah, era só isso.

— É por conta da minha senhora.                                                                              

— A nojentinha que nem desce nas paradas?

Dei de ombros, confirmando.

— Então, é bem gasto.

Levei a mão à aba do chapéu, cumprimentando a estalajadeira antes de sair praticamente correndo de volta para a carruagem.

Assim que me aproximei do coche, dei continuidade à encenação, indo à porta da cabine para entregar o jornal e a garrafa de vinho para a “minha senhora”. Por um momento, a imagem numa das paredes da estalagem, de um homem corpulento com uma pinta enorme na bochecha direita, chamou minha atenção, junto com os dizeres abaixo: O Duque desgraçado ataca mais uma vez! Tirem o título dele logo!

Sorri do desenho, pois era engraçado ver um nobre enrolado em anáguas e rendas como punição. Ao lado, uma notícia mais preocupante: A guerra contra a França continua. Essa era uma informação horrível, me fez lembrar onde estava e do risco que corria. Voltei a me concentrar na mentira que tinha montado. Fechei a porta da cabine, subi rápido para o lugar de condutor, colocando a bolsa na boleia, ao lado do meu companheiro, que esperava ainda dormindo com a cabeça baixa, tão imóvel que parecia sem vida.

— Aguente firme, colega. Você vai sobreviver — sussurrei, como se contasse uma piada só para meu companheiro de viagem. Rindo, bati na perna dele, criando certo movimento. Agradeci ao menino antes de retomar as rédeas e partir dali.

Só quando ganhei distância da estalagem foi que respirei fundo. Havia passado por mais uma provação. Que sufoco!

Precisava parar para comer o que peguei na estalagem, para revisar o mapa e me certificar que faltava menos de três horas até Redlake House. Além disso, o mais importante era refazer o estofo do meu companheiro cocheiro.

— Sabe, camarada, o problema é o vento. Por isso seu estofo vai perdendo o viço, Louis — expliquei, me desculpando com o boneco. — Seria melhor a gente ir mais devagar, assim manteríamos você inteiro, mas é perigoso, já falamos sobre isso. As meninas estão mais seguras dentro da cabine, mas se for necessário, posso trocar você com sua irmã, a Louisa. Hein, o que acha? Assim ela me faz companhia no restante do trajeto e você descansa com Milady. Por enquanto, vamos ficar de olho em um lugar seguro para pararmos e escondermos a carruagem. — Bati no ombro do Louis amigavelmente.

Às vezes, cogitava a ideia de que havia enlouquecido momentaneamente ou que tinha mesmo perdido a sanidade para sempre. Nos meses em que meu pai ficou preso, esperando julgamento, tive que ir vendendo tudo que a gente tinha e gastei até o último centavo do que possuíamos para pagar uma cozinheira e uma criada, que mantinham a casa funcionando. Quando acabou e vendi a casa, precisei evoluir da menina amedrontada pelo futuro para alguém que sobrevivia por conta própria, me transformando nessa farsa.

Ficar insana até poderia ser uma solução. Se algum médico atestasse isso, teria ido para um asilo com gratidão nos olhos. Teria um teto sobre minha cabeça, comida e companhia. O problema era que, até o dinheiro para chamar um médico, se esvaiu como água cachoeira abaixo.

Perdida em pensamentos, avistei uma bonita ravina, onde decidi parar. Prometi a mim mesma que partiria em meia hora. A primeira providência a tomar foi encher o pescoço de Louis com o jornal amassado, bolinha por bolinha. A roupa, que estava boa, eu poderia usar uma próxima vez, trocando com o boneco. Milady estava bem estofada e presa. Sequer precisei tirar as amarrações que a mantinham segura contra o assento, entre os baús e caixas dos meus pertences.

— Nem o chapéu saiu do lugar! Boa menina!

Louisa, a dama de companhia e irmã do Louis, ajudava a compor a sombra das passageiras dentro da cabine. Infelizmente, ela precisou sair e ser amarrada na boleia no lugar do meu atual companheiro. Seu irmão tomou o assento no banco em frente à Milady, com a cartola de meu pai, falecido na prisão, completando a sombra de um nobre. Para uma pessoa desatenta, os dois bonecos até que faziam um casal bonito.

Voltando para a frente, tratei de me alimentar. Precisava estar forte para acabar a jornada. Só em Redlake House poderia voltar a ser Natalya Jackson, uma boa moça de família.

As últimas milhas de viagem foram mais tranquilas. Sentia-me mais segura por ter conseguido chegar até ali, além disso, a escuridão do lusco-fusco seria boa para me ajudar a descarregar a carruagem sozinha. Herdei Redlake House de meu pai, mas nunca estivera nela. Não sabia se havia vizinhos, se estava em boas condições, se era grande ou pequena. A única certeza era que o local seria meu único paradeiro no mundo. A forma como descobri essa saída ainda está fresca na minha mente: foi numa conversa com o advogado ganancioso.

— Senhorita, seu pai lhe deixou uma herança que não foi perdida ou confiscada pelas autoridades: uma casa no interior, Redlake House. Os documentos dizem que a casa é sua, assim como o parque ao redor. Contudo, os vales e planícies são parte do ducado onde a sua propriedade está localizada. Mesmo sendo isolada, é um bom imóvel. Posso tomar conta da questão para a senhorita. Afinal, uma jovem nunca poderia morar sozinha em um local afastado. — Podia ver o Sr. Lewis salivando, imaginando o tanto que isso me custaria em honorários devidos a ele. Precisaria ser muito esperta para não deixar mais que um homem tomasse conta da minha vida. Não seria mais ingênua, e sim desconfiada com tudo e todos.

Lidar com o advogado me transformou em uma mulher teimosa. Se ele acreditava que eu nunca poderia viver sozinha, eu provaria que estava errado. Ia fazê-lo engolir que sim, uma moça tem vida sem parentes por perto.

Filha única, de um casal de posses, fui criada com todos os mimos que meu pai, um comerciante importador, poderia me dar. Morava em um bairro elegante na capital, tinha criados e veículos à disposição, bem como vestidos caros e chapéus extravagantes, além de tutores variados. Eles planejaram um bom baile de debutante que me faria começar a participar das temporadas na sociedade com o pé direito. Minha mãe esperava que eu casasse com um homem de posses e respeitado. Até mesmo sonhei com isso.

Os problemas começaram quando meu pai ficou deslumbrado ao ser convidado para participar de um clube de cavalheiros da aristocracia. Conviver com os nobres mudou os pensamentos de meu pai. Ele passou a fazer negócios mais ousados, sem garantias, e a ter ambições irreais.

Minha mãe logo percebeu a situação. Ela sempre dizia que precisávamos saber nosso lugar e ficar nele. Um círculo onde éramos respeitados.

Papai reclamava, dizendo que a esposa era simplória, que queria pouco da vida. Eu era uma garota de apenas 17 anos, que ficava na corda bamba entre ter uma vida ainda melhor do que ser esposa de um comerciante ou me conformar com uma possibilidade menor.

A melancolia das disputas corroeram minha mãe em silêncio; logo a fraqueza a consumiu. Ela ficou muito doente, e a perdemos justo quando meu pai conseguiu fechar um grande negócio com os parceiros nobres.

A dor de ficar órfã de mãe foi superada com o choque de ver as autoridades adentrarem nossa casa para levar meu pai preso por lidar com mercadorias roubadas. O tal grande negócio dos nobres vinha de um navio raptado por piratas em alto-mar, que furaram o bloqueio da Marinha contra Napoleão. Meu pai era o responsável, por isso foi preso, julgado e condenado. Fiquei sozinha, apenas com os criados e todas as contas que precisavam ser pagas.

Vendi tudo o que sobrou: joias, móveis, quadros, estatuetas, até pratos e panelas. Só salvei os livros, meus grandes companheiros nesta jornada. Todo o dinheiro que juntei, estou usando para fazer essa viagem, disfarçada de cocheiro, levando três bonecos feitos de roupas velhas recheadas de palha e jornal.

Pensar em como minha vida mudou, só trazia tristeza nesse momento. Mas eu já podia ver o portal da felicidade. Ele dizia: Redlake. A sensação de ter cumprido minha meta quase trouxe lágrimas aos meus olhos.

A estradinha que rodeava o enorme corpo d’água mostrava de onde vinha o nome do lugar: ao se pôr, o sol pintava o lago de vermelho.

— Magnífico! — sussurrei para mim mesma. — Tomara que minha casa tenha vista para essa beleza toda. Isso é um sinal de que minha vida em Redlake House vai ser boa de novo — garanti em voz alta, assim Louisa, Louis e Milady ouviriam.

 Quando avistei uma simpática casa de dois andares, ladeada por colunas que seguravam um telhadinho repleto de eras e plantas bastante crescidas, deixei um suspiro escapar:

— Cheguei em casa.

O lugar tinha um ar de abandono, intensificado pelas plantas que pareciam não ter sido cuidadas pelos últimos meses. O mato tomava as paredes da fachada e os canteiros de flores do jardim. Um dia aquilo havia sido bonito, porém, agora, era só um emaranhado de galhos e folhas. Mas era minha casa! Podia resolver isso com tempo!

Parei a carruagem na entrada, desci e puxei os cavalos, ainda atrelados ao coche até a parte de trás. Estava curiosa para entrar e descobrir mais sobre a minha casa. Apesar de tudo, era bem bonitinha, estava inteira e, o principal, era minha.

A expectativa era grande. Será que os móveis estavam bem guardados? Minha cama teria um dossel enorme? Como seriam os cômodos de banho? Minhas mãos tremiam de tudo o que se passava dentro de mim, o que acabou dificultando enfiar a chave que o advogado mandou na fechadura. Meus olhos lacrimejavam, os joelhos falhavam, atrapalhando que eu procurasse na moldura da porta da frente a cópia da chave. Não encontrei nada.

Senti o desespero tentar me dominar. Só pensava que precisava entrar para ficar segura. Uma moça sozinha não poderia dormir na carruagem. Qualquer ladrão ia precisar só de dois minutos para ver que meus companheiros eram bonecos!

Respirando fundo, voltei para a parte de trás. Quem sabe eu teria mais sorte na porta dos fundos?

— Isso! — Comemorei ao sentir meus dedos tocarem um embrulhinho sobre o portal. Era mesmo uma chave. Não tardei a enfiar na fechadura para finalmente entrar, chorando. — Parabéns, Alya! A Srta. Natalya Jackson está, finalmente, em casa!

Se ao menos eu imaginasse o que me esperava…

Nas garras de um Duque

Virgine Coks

298 Páginas

Recomendado para maiores de 18 anos

Um romance apimentado, carregado em erotismo vanilla, para conquistar o coração das leitoras.
St Daniels é o Duque perfeito, tão bonito quanto debochado e, no entanto, cai de desejo pela moça simples que o enfrenta de igual para igual. Casinha no interior, reforma de mansões, floresta em noite de luar, tempestade e por do sol encantado formam o cenário perfeito para a sedução e o nascimento de um laço forte demais para ser desfeito por um desentendimento.

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